sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008



Capítulo I


Sobre uma azinheira, a Rainha do Céu



“Ai! Que senhora tão bonita! Ai! Que senhora tão bonita!”
A voz cristalina da pastorinha ecoava pelas encostas da serra, misturando-se ao som dos chocalhos das ovelhas as quais, plácidas e obedientes, iam ganhando a estrada de volta ao redil.
Enquanto conduzia o rebanho, a pequena Jacinta não continha a alegria pelo que havia presenciado, junto com seu irmão Francisco e a prima Lúcia, naquele bendito domingo, 13 de maio de 1917.
Logo de manhã, quando o lindo alvorecer prenunciava um dia ensolarado e risonho, aprontaram-se e foram assistir à Missa na igreja paroquial de Fátima. Cumprido o preceito, retornaram às suas casas em Aljustrel, a fim de combinar, como de costume, o local aonde levariam a pastar as ovelhas. Escolheram a Cova da Iria, propriedade dos pais de Lúcia, nos altos da Serra de Aire.
Após prepararem um lanche, partiram contentes e festeiros, tocando vagarosamente o rebanho, para que os animais fossem pastando pelo caminho.
O tempo transcorria calmo e entretido durante a permanência dos pastorinhos na Cova da Iria. Junto de uma pequena oliveira que o pai de Lúcia plantara por ali, os três comeram a merenda, composta de pão de centeio, queijo e azeitonas, e rezaram um Terço. Perto do meio-dia, subiram até um terreno mais elevado da propriedade e começaram a brincar.
De repente, em meio ao seu inocente recreio, as três crianças foram surpreendidas por um clarão semelhante ao de um relâmpago. Correndo os olhos pelo horizonte, viram que continuava limpo, o céu luminoso e sereno. Entreolharam-se, então, mudas e atônitas: que seria aquilo? Mas já Lúcia, com certa vozinha de mando, ordenou:
― Vamos embora, porque pode vir trovoada.
― Pois vamos ― disse Jacinta.
Reuniram o rebanho e tocaram-no, descendo pela direita. Mais ou menos no meio da encosta, tendo uma azinheira grande pela frente[1], viram um segundo relâmpago. Um pouco assustados, procuraram acelerar a descida, mas logo se detiveram maravilhados: a curta distância, sobre uma carrasqueira de um metro e pouco de altura, viram uma majestosa Senhora que lhes disse com doçura:
― Não tenhais medo, Eu não vos faço mal.
“Era uma Senhora vestida toda de branco”, contou depois Lúcia, “ mais brilhante que o sol, espargindo luz mais clara e intensa que um copo de cristal cheio de água cristalina, atravessado pelos raios do sol mais ardente”[2]. Seu rosto era de uma beleza nunca vista, nem triste, nem alegre, mas sério, talvez com uma suave expressão de leve censura. O vestido, mais branco que a própria neve, parecia feito de luz. Tinha as mangas relativamente estreitas e era fechado no pescoço, descendo até os pés, os quais, envolvidos por uma tênue nuvem, mal eram vistos roçando as folhagens da azinheira. Cobria-lhe a cabeça um manto, também branco e orlado de outro, do mesmo comprimento que o vestido, envolvendo-lhe quase todo o corpo. “As mãos, trazia-as juntas em oração, apoiadas no peito, e da direita pendia um lindo rosário de contas brilhantes como pérolas, terminando por uma cruzinha de vivíssima luz prateada. [Como] único enfeite, um fino colar de ouro-luz, pendente sobre o peito, e rematado, quase à cintura, por uma pequena esfera do mesmo metal”.
Os três pastorinhos se encontravam tão perto da Aparição que ficavam dentro da luz que A cercava. Lúcia tomou a iniciativa de falar:
― Donde é Vossemecê?
― Sou do Céu.
― E que é que Vossemecê me quer?
― Vim para vos pedir que venhais aqui seis meses seguidos, no dia 13, a esta mesma hora. Depois vos direi quem sou e o que quero. Depois voltarei ainda aqui uma sétima vez.
― E eu também vou para o Céu?
― Sim, vais.
― E a Jacinta?
― Também.
― E o Francisco?
― Também, mas tem que rezar muito Terços.
E Nossa Senhora continuou:
― Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores?
― Sim, queremos.
― Ides, pois, ter muito que sofrer, mas a graça de Deus será o vosso conforto.
Ao pronunciar essas últimas palavras, a Santíssima Virgem abriu as mãos e uma luz intensa saiu delas, penetrando no mais íntimo da alma dos pastorinhos. Sentiram-se muito próximos de Deus e mais felizes do que nunca. Então, pó um impulso que lhes foi comunicado do alto, caíram de joelhos e repetiram para si mesmos:
― Ó Santíssima Trindade, eu Vos adora. Meu Deus, meu Deus, eu Vos amo do Santíssimo Sacramento.
Passados alguns instantes, Nossa Senhora acrescentou:
― Rezem o terço todos os dias para alcançarem a paz para o mundo e o fim da guerra.
Referia-se à Primeira Guerra Mundial, iniciada em 1914.
Depois a Senhora começou a elevar-se serenamente, sempre rodeada de luz, e subiu em direção leste até desaparecer no azul do céu. Os três pastorinhos permaneceram silenciosos e pensativos, contemplando longamente o firmamento, enquanto despertavam do estado de êxtase em que se encontravam. Ao seu redor, a natureza voltara a ser o que era antes. O sol continuava a brilhar sobre a terra, e o rebanho, espalhado, deitara-se à sombra das azinheiras. Na serra deserta, tudo era sossego.
A celeste Mensageira havia produzido nas crianças uma deliciosa impressão de paz e de alegria radiante de leveza e liberdade. Parecia-lhes que poderiam voar como os pássaros.
A Virgem Maria falou apenas com Lúcia, enquanto Jacinta permanecia calada, só ouvindo o que Ela dizia. Mas Francisco não A ouvia, concentrando toda a sua atenção somente em vê-La. Quando as meninas lhe relataram o diálogo com Nossa Senhora e a referência que a ele fora feita, encheu-se de grande alegria. Cruzando as mãos acima da cabeça, exclamou em voz alta:
― Ó minha Nossa Senhora Rezarei quantos Terços Vós quiserdes!
Já ecoavam na serra os sinos das Ave-Marias do entardecer, quando os pastorinhos tocaram as ovelhas, tomando o caminho de volta. O silêncio dos três era à vezes entrecortado pelas alegres exclamações de Jacinta:
― Ai! Que Senhora tão bonita! Ai! Que Senhora tão bonita!

[1] Azinheira, conhecida também como carrasqueira, é uma espécie de carvalho,
[2] Salvo indicação em contrário, todas as falas marcadas por travessão, assim como as passagens entre aspas, são transcrições (com adaptações para o português do Brasil) das Memórias da Irmã Lúcia, apresentadas pelo Pe. Antônio Maria Martins, S.J., Edições Loyola, São Paulo, 1974.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Capítulo 2


O Anjo de Portugal



O maravilhoso encontro com a Mãe de Deus não fora a primeira visita que os três pastorinhos receberam do Céu. A fim de prepará-los para aceitar e divulgar a mensagem de Fátima, a providência Divina lhes enviara no ano anterior o anjo de Portugal, para manifestar os desígnios de misericórdia de Jesus e Maria sobre eles.
Foi quando se abrigavam de uma chuva fina na Loca do Cabeço, pequena gruta situada numa propriedade do padrinho de Lúcia, que o Anjo lhes apareceu claramente pela primeira vez. À medida que ele se aproximava, os meninos iam distinguindo sua fisionomia: era a de um jovem de 15 anos, parecendo feito de neve, muito formoso e mais reluzente que um cristal atravessado pelos raios do Sol Surpreendidos diante de tanta beleza sobrenatural, não conseguiam pronunciar palavra.
Ao chegar junto dos pastorinhos, o mensageiro celeste lhes disse:
― Não temais, sou o Anjo da Paz. Orai comigo.
Ajoelhou-se e se curvou até tocar o chão com a fronte. Os três meninos fizeram o mesmo e repetiram as palavras que lhe ouviam pronunciar:
― Meu Deus, eu creio, adora, espero e amo-Vos. Peço-Vos perdão para os que não crêem, não adoram, não esperam e não Vos amam.
Após ter recitado esta oração três vezes, o anjo levantou-se e disse-lhes que rezassem sempre, porque Nosso Senhor e Nossa Senhora estavam atentos às suas orações. E desapareceu.
Algumas semanas depois, quando os pastorinhos brincavam junto ao poço no quintal da casa de Lúcia, o anjo surpreendeu-os novamente.
― O que fazeis? ― perguntou ― Rezai, rezai muito! Os Corações de Jesus e Maria têm sobre vós desígnios de misericórdia. Oferecei constantemente ao Altíssimo orações e sacrifícios, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido, e de súplica pela conversão dos pecadores. Atraí, assim, sobre a vossa Pátria a paz. Eu sou o anjo da sua guarda, o anjo de Portugal. Sobretudo aceitai e suportai com submissão o sofrimento que o Senhor vos enviar.
Dizendo isto desapareceu.
Mais tarde, por volta de outubro de 1916, novamente na Loca do Cabeço, deu-se a última aparição do Anjo. Depois de terem tomado a merenda, as crianças se puseram a rezar, com o rosto em terra, repetindo a oração que dele haviam aprendido. De repente, perceberam uma luz desconhecida a brilhar sobre eles. Ergueram-se e viram o Anjo, que trazia na mão esquerda um cálice, sobre o qual, com a direita, segurava uma Hóstia. Desta caíam algumas gotas de Sangue dentro do cálice.
Deixando a Hóstia e o cálice suspensos no ar, o Anjo se colocou junto às crianças, curvou-se também e lhes ensinou outra oração ainda mais bela:
― Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, adoro-Vos profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Jesus Cristo, presente em todos os Sacrários da Terra, em reparação dos ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que ele mesmo é ofendido. E pelos méritos infinitos de seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria, peço-Vos a conversão dos pobres pecadores.


Na Loca do Cabeço, imagens recordam a Comunhão dada pelo Anjo aos pastorinhos

Levantando-se, o Anjo tomou na mão a Hóstia e a deu a Lúcia. Francisco e Jacinta se perguntavam se receberiam também a Hóstia, pois ainda não tinham feito a Primeira Comunhão. O Anjo avançou até eles e deu-lhes a beber do cálice, dizendo:
― Tomai e bebei o Corpo e o Sangue de Jesus Cristo, horrivelmente ultrajado pelos homens ingratos! Reparai os seus crimes e consolai o vosso Deus.
Depois, ajoelhou-se e repetiu a mesma oração três vezes: “Santíssima Trindade...”, etc. E desapareceu.
Nunca mais o veriam. Porém, haviam ficado profundamente impressionados pelas palavras dele. A partir de então, passaram a rezar mais e a fazer constantes sacrifícios em reparação a Deus e pela conversão dos pecadores.
E assim foi que suas almas inocentes, alguns meses depois, encontravam-se preparadas para o bendito e inesquecível momento em que contemplariam, na Cova da Iria, uma Senhora mais brilhante que o Sol.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Capítulo 3


Jacinta e Francisco


Lúcia, Francisco e Jacinta nutriam grande benquerença mútua, e sua verdadeira felicidade consistia em passarem os dias juntos. Todas as tardes, os três eram vistos saindo pelos campos de Aljustrel, entre oliveiras e azinheiras, numa roda contínua de brincadeiras e de cantos. Quando se cansavam, Lúcia repetia para os primos alguma das histórias de fada que aprendera.



Candura e retidão de Jacinta



Certa vez, em casa dos pais de Lúcia, os três se entretinham no jogo das prendas, um dos preferidos de Jacinta. Nessa disputa, quem perde fica obrigado a realizar uma determinada tarefa ordenada pelo vencedor. Ela gostava de mandar os outros correrem atrás de borboletas ou apanhar uma flor de sua escolha. Entretanto, coube-lhe naquele dia obedecer ao desejo da prima, que saíra vitoriosa. Lúcia, vendo um de seus irmãos ali perto, ordenou à pequena que fosse lhe dar três abraços e três beijos.
― Isso não! ― protestou Jacinta. ― Mande-me fazer outra coisa. Por que não me manda beijar aquele Nosso Senhor que está ali?!
Era um Crucifixo que estava pendurado na parede.
― Está bem ― respondeu Lúcia. ― Suba numa cadeira, traga-o até aqui e, de joelhos, dê-lhe três abraços e três beijos: um pelo Francisco, outro por mim e outro por você.
― Em Nosso Senhor dou todos os que você quiser.
Dizendo isso, correu até o crucifixo. Beijou-o e abraçou-o com tanta devoção, que Lúcia nunca mais se esqueceria desse gesto. Jacinta deteve-se a observar com atenção a imagem do Crucificado, e perguntou:
― Por que Nosso Senhor está assim pregado numa cruz?
― Porque morreu por nós.
― Conte-me como foi.
Cativante narradora, Lúcia transmitiu à prima o que conhecia da história da Paixão. Ao ouvir a descrição dos sofrimentos de Jesus, a pequenina enterneceu-se até as lágrimas. E, muitas vezes depois, pedia que lhe repetisse essa história. Sempre chorava, compadecida, e em sua candura de alma dizia:
― Coitadinho de Nosso Senhor! Eu não vou fazer nunca nenhum pecado! Não quero que Nosso Senhor sofra mais!
Eis aí um tocante exemplo de retidão e candura de alma de Jacinta.
Era uma menina com o físico natural das crianças de sua idade: bem desenvolvida, robusta, mais magra que gorda, o rosto bronzeado pelo sol da serra. Protegidos por acentuadas sobrancelhas, reluziam-lhe na face de curvas gentis dois olhos grandes e castanhos, exprimindo toda a vivacidade que a animava. Tinha um coração com muito boas inclinações, enriquecido com um caráter doce e meigo, que a tornava amável e atraente.
Com freqüência, ao entardecer ela saía para o terreiro à frente de sua casa e ali admirava a beleza do pôr-do-sol e o surgimento do céu estrelado. Entusiasmava-se com as lindas noites de luar e competia com o irmão e a prima para ver quem era capaz de contar as estrelas, às quais chamavam de lamparinas ou candeias dos anjos. A lua era a de Nossa Senhora, e o sol a de Nosso Senhor. Francisco era entusiasta do sol, mas Jacinta às vezes dizia:
―Ainda gosto mais da candeia de Nossa Senhora, que não nos queima nem cega. E a de Nosso Senhor, sim...
Não obstante essa preferência, manifestava diversas vezes, com gestos e expressões comovedoras, seu intenso amor a “Jesus escondido” (como os três se referiam ao Santíssimo Sacramento), ardendo no desejo de recebê-lo, o quanto antes, na Primeira Comunhão. À espera desse momento, tinha especial prazer em imitar o Divino Redentor, como lembra a Irmã Lúcia:
“Jacinta gostava também muito de agarrar os cordeirinhos brancos, sentar-se com eles no colo, abraçá-los, beijá-los, e, à noite, trazê-los ao colo para casa, a fim de que não se cansassem. Um dia, ao voltar, meteu-se no meio do rebanho.
― Jacinta ― perguntei-lhe ― , para que você vai aí, no meio das ovelhas?
― Para fazer como Nosso Senhor, que, naquele santinho que de deram, também está assim, no meio de muitas, e com uma ao colo!...”


Um menino decidido e pacífico


Entre Francisco e Jacinta parecia haver semelhanças apenas nas feições do rosto e na prática da virtude. Ao contrário de sua irmã, o menino era pacífico e condescendente. Quando, nas brincadeiras com seus amigos, alguém insistia em lhe negar seus direitos de vencedor, cedia sem resistência, dizendo: “Você pensa que ganhou? Está bem! A mim isso não importa!”
Seu jogo predileto era o das cartas, e não manifestava, como Jacinta, o gosto pela dança. Preferia tocar pífaro e cantar, enquanto os outros dançavam. À noite, entretinha-se também a contar as estrelas, mas nada o encantava tanto como o nascer e o pôr-do-sol.
― Nenhuma lamparina é tão bonita como a de Nosso Senhor ― dizia ele a Jacinta.
“E, entusiasmado, seguia com a vista todos os raios os quais, dardejando nos vidros das casas das aldeias vizinhas, ou nas gotas de água espalhadas nas árvores e matos da serra, os faziam brilhar como outras tantas estrelas, a seu ver mil vezes mais bonitas que as dos Anjos.”
Manso e obediente, era um menino de olhar decidido, e parecia nada temer. Enfrentava corajosamente a noite fechada e a escuridão da serra, diante das quais os outros rapazes de sua idade se arrepiavam. Paciência, destemor e coragem faziam dele o orgulho do pai, que depositava nele grandes esperanças.
Entretanto, maiores eram os planos que a Santíssima Virgem tinha para Francisco, ao escolhê-lo, ao lado de Jacinta e de Lúcia, para portador de sua celestial Mensagem.